segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Paladar de Infância

O intuito desse blog era relatar todos os meus dias em uma espécie de diário, mas percebi que isso não ocorreu, talvez por minha repulsa por aquilo que se torna regra em minha vida. As únicas que ainda consigo seguir são as que os outros me impõe. Bem! Isso não é bem uma regra, é mais um tipo de defesa reversa, uma liberdade falsária. Eu me calo, me omito e não me responsabilizo pelo desfecho dessa história. Me escondo atrás dos controladores cordõezinhos transparentes. Que patético! Entre uma puxada de linha e outra o ventríloquo não percebe, mas sua marionete é oportunista, principiante e acaba se mostrando em um ato aqui e outro ali. Assustado o fantoche percebe, que ainda assim, nesses momentos falhos, parece não ter controle nenhum sobre si e passa a duvidar se sua voz é realmente a dissimulação do senhor que fala pelo canto da boca.

E aqui nesse blog o que tenho tentado fazer é colher meu ser desintegrado. Meu ser que perde em alguns momentos as linhas invisíveis que o controla. Meu ser que esfacelou-se em grãos pequenos demais para serem notados. Em fragmentos que assumem, muitas vezes, uma aparência insignificante de casca, embalagem que cobre o que realmente importa e é jogada fora na beira de alguma estrada ou na lata de lixo seletivo...

Quando eu era criança, antes do politicamente correto, ficava imaginando aquele saquinho plástico que cobriu meu chocolate, a balinha do meu irmão, o bubbaloo da minha irmã e outros objetos que ficariam jogados na estrada de chão. Lá naquele deserto solitário. Ficariam ali desbotando a luz do sol e sumindo sob a poeira. Eu fui o tipo de criança que imaginava mais as aventuras ou desventuras daqueles objetos que cobriam meus lanches do que o percurso que a comida faria no meu sistema digestivo.

Era o mesmo com os papéis de presente. Desmascarar os embrulhos me fazia sentir uma espécie de decepção dolorida ao descobrir que a emoção maior já tinha ido embora com a abertura da embalagem:
Aquelas sensações efêmeras das mãozinhas nervosas, dos olhinhos lânguidos de uma permanente aparência de sonolência brilhando do mistério, do frio na barriga em um misto de gozo e medo incerto, da imaginação abrasada bolando a idéia daquela pessoa pensando em mim ao comprar o presente, ao embrulhá-lo. Eu estava lá sem ao menos saber, na mente, nas lembranças que deve ter impulsionado a pessoa a comprar. Pensaram em mim, gastaram um tempo comigo.

Enquanto a efemeridada do tempo ligeiro e escorregadio fazia das minhas mãos gordinhas, mas muito pequenas, ampulheta eu deixava toda a areia escorrer entre meus dedos soados. Cansado dessa brincadeira eu tentava escapar do círculo claustrofóbico que gritava tic-tac sem parar. Em acessos de possessão o cruel relógio esbravejava na figura de um ditador de bigodinhos e calças engraçadas rebolando ritmicamente e o meu medo fazia com que me desequilibrasse e minhas mãos desastradas, mais uma vez, se atrapalhavam no meio do malabarismo deixando cair os cristais de pura satisfação.

O papel de presente após aberto era desprezado ou quando muito jogado embaixo da cama, na crença de que papeis de presente atrai mais presentes. Desprezado, também, era o turbilhão de emoções que antecedia a abertura do presente. A realidade ali naquele minuto perdia o encanto da imaginação. Então vinha um desalento que me levava a um pântano de águas serenas, de uma calmaria assustadora. O que havia em mim era um torpor de animal. Preza de algum caçador não tinha medo, o que sentia era a necessidade de expulsar aquela felicidade que arrepiava minha espinha de um frio cortante e sadicamente evaporava lentamente. Trovões longínquos estrondavam sobre a recordação de momentos insípidos, clarões revelavam que esses momentos pareciam ser maioria, o que aumentou o lamento grave daqueles estrondos que mais pareciam um choro abafado. Os regalos que me deram alegria aumentavam ainda mais os sofrimentos que antes pareciam pequenos.

Pensam que dramatizo demais, talvez sim, é que não consigo rir para não chorar, não por dentro. Eu consigo ver o cômico no seriado de drama a que todos elogiam. Consigo perceber a dor exagerada que puxa o riso de tão surreal em filmes por aí a que todos aclamam como extremamente engenhoso, mas não consigo rir e quando o faço é um sorriso desesperado, plástico, incompreensível.

Sempre pensava quanto a isso: Inteligente demais para uma gargalhada faceira, admiração sim pela astucia de quem consegue fazer uma dramédia e tomar uma limonada no final. Refresco, por sinal, difícil de se temperar: ora aguado, ora ácido demais, ora doce de menos. Ou então exclamava: Muito dolorido para uma risada sincera, dentes mostrando-se complacentes, talvez.
Meus risos francos são débeis, histéricos, estéreis, não conseguem parir. Eles surgem de repente, inusitados, sem lógica ou explicação. São de um frescor, de um sabor e se espalham ali pela boca. Lá derramam-se, misturam-se com o ambiente e esvaem-se com o instante. Insubstituíveis, inigualáveis entre si. Não são parentes, não se conhecem. Vivem assim. Não sabem que são passageiros, não querem saber. Interessam-se mais em escorregarem boca a fora, criaturas que não sabem de si.

Tudo o que foi dito até aqui veio para que eu pudesse falar da partida do meu irmão. Ele foi morar com minhas tias, com a minha vó, meu vô. Lugar para onde eu sempre corri, lugar onde o tempo não anda. Quem disse que o tempo não pára para que concertemos nosso coração não conhece esse lugar. Lá ele pára. Ao menos é o que eu pensava, mas não é verdade o tempo não parou.

Eu morei lá, nesse lugar, quando criança. Depois me mudei e voltei com 11 anos e depois com 18 e agora percebi que o que me fez pensar que o tempo havia parado foram os dias em que me sentei no meio fio e fiquei olhando o céu. Deitado no canteiro de uma avenida voltava a ser a criança que um dia fui. Eu era tão pequeno, tão cheio de vida, tanta vida que sentia uma constante febre, como atacado de uma infecção. Eu era só um bichinho no mundo. Eu gostava de sentir aquilo. Tinha muitos planos e muito espaço para sonhar. Tinha a vida inteira, o tempo todo. Me sentia de certa maneira infinito. Feliz de verdade, triste de verdade, imerso em sentimentalidades de verdade. Meu estômago as vezes não suportava tanto desejo, embrulhava-se, eu me sentia mole, suava frio, me sentia fraco, leve, então eu vomitava e flutuava. Era como morrer e renascer limpo.

Quantas possibilidades para mim criança. Eu podia deitar no chão fresquinho da casa ou na terra úmida, da sombra de alguma árvore, e não fazer nada, apenas arder envolto em sentimentos e reparar, prestar atenção no percurso de tudo ao meu redor, nos sons, nas cores. Eu podia ficar ali quanto tempo desejasse, nunca era tarde. O tempo? Esse não me preocupava, eu estava na vida e ela era grande demais para mim, tão grande que eu me perdia e dava gritinhos e soluços de prazer. Que bom que era! Mas eu cresci, rápido demais, e essa grandeza engoliu a vida. A vida selvagem que era imensa, do tamanho do infinito, livre, está agora dentro de mim, perdida.
Agora vi que o tempo não parou mesmo. Descobri que ele foi e é apenas relativo. Tudo depende do ângulo que você o espreita. E a visão que se tem quando o espaço é maior do que a vida não é muito agradável. O vácuo é monótono e não dá para senti-lo. Dá um vazio...

Casca de balinha mochileira. Papéis de presentes que embrulham maravilhas secretas. Olhos sorridentes e boca cega. Tempo relativo. O que quero dizer com tudo isso? O que meu irmão tem a ver com tudo isso?

Nada, além da sensações que surjam e nasçam desta leitura. Meu texto é despretensioso. Não quero que sinta nada além do que sinta ao ler. Se não tiver coerência? Saiba desde já que minha cabeça é assim. Se não tiver lógica? Prepare-se, eu já afirmo agora e poupo seu tempo: não tem.

Voltemos ao assunto. Eu e meu irmão fomos criados juntos. Quando crianças éramos confundidos com gêmeos. A família nos chamava como a uma dupla: o nome dele era como o meu sobrenome, sempre ditos juntos, como uma palavra composta que separada perde o significado. Ele conheceu partes profundas minhas. Partes que não mostro a ninguém. Vivemos tanto tempo ligados que quando não estávamos juntos era como se as pessoas achassem que eu não estava completo e perguntavam por ele. Passamos tantos momentos juntos, que quando eu falava sobre algo não precisava contextualizá-lo, pois ele estava lá quando aconteceu.

Mas fui uma criança que não sabia me relacionar com sentimentos de maneira convencional, e quem estava perto de mim sofria as consequências. Estava habituado a lidar com acontecimentos práticos e externos a mim, seguindo o que me diziam para fazer ou imitar o que eu observava distraidamente por aí. Entender meus pensamentos e emoções foi e é algo penoso e doloroso, pois só há como fazer isso sozinho, sem palpites ou conselhos, mapas ou receitas. Afinal como é possível dizerem o que eu estou sentindo? Tenho que conviver com essa dúvida, se o que estou sentindo é real ou estou forçando.

Eu lembro que tinha medo de não sentir nada, de ser do mal, de ser insensível, de ser prejudicial. Então eu maquinava situações para me expor a sentimentos diversos. Cometia as piores atitudes para ter certeza de que eu era humano, que tinha alguém ali que se preocupava, que sofria com ações indelicadas, danosas. Eu era perverso por medo de ser cruel, por incerteza. Se eu fosse desumano? Essa dúvida me aproximava cada vez mais dos meus temores só para que eu pudesse sentir remorso dos meus atos.

Uma vez matei um gatinho exprimido em um cano. A dor, a culpa e a vergonha por tal feito me corroeram por anos. Digo para todos que eu era criança e só queria vê-lo sair na torneira, como nos desenhos animados que eu via. Tudo mentira. Eu já sabia que não era tão inocente assim e essa dissimulação me assustava. No entanto foi essa a forma que eu encontrei para provar para mim mesmo que eu tinha bondade ali dentro, fazendo os outros sofrerem e observando se eu sentia alguma coisa vendo aquilo. Quantas vezes quando criança eu com os olhos cheios de lágrimas e o coração apertado, doendo no peito, dizia a minha mãe que eu não a amava e que não via a hora de crescer e sumir, só para ter certeza que o que eu sentia por ela era verdadeiro. Tantos amigos eu afastei, maltratando-os só para provar que eu realmente gostava deles e sofreria com as partida que eu provoquei. Me mutilei, senti minhas entranhas serem rasgadas quando fazia terror psicológico, dizendo que se meu pai morresse eu nunca mais iria ver minha irmã mais nova, pois o que nos ligava era meu pai, já que nossas mães eram outras. Quase matei minhas emoções mais puras destratando meu irmão constantemente. Meu amor visceral era destrutivo e eu não dizia para ninguém os verdadeiros motivos de minhas atitudes. Sabia que ninguém entenderia. A lógica do meu amor não faz sentido nem para mim.

O mais impressionante é que mesmo assim meu irmão me compreendia. Ele sabia que nesses meus momentos de fúria, dor e atitudes nocivas, tinha muito mais do que só maldade. Era como se ele conseguisse ver em meus olhos um brilho diferente. Algo contraditório que me desmentia, me entregava, bem lá naquela profundidade castanha em minha face. Essa compaixão suscitou nele, mais do que em mim, a certeza do humano assustado, encolhido, angustiado, com medo, que se destruía mais do que atacava, bem ali escondido nos meus olhos.

O que sobrava depois desses acessos irracionais, na maior parte das vezes, era um sofrimento agudo e forte na hora das despedidas, pois talvez eu tivesse destruído tudo de bonito que contruíram ou pudessem guardar de mim.
Na verdade nunca gostei de despedidas, para mim elas sempre foram definitivas, o tempo me ensinou isso: A pessoa, o ser, o objeto, o lugar que eu voltava a ver nunca eram os mesmos, eram sempre outros. As pessoas eram outras, eu não era o mesmo. Os olhos diferentes já não reconheciam o que observavam, eles ficavam ligados, desesperados, correndo em todas as direções, em uma tentativa angustiante de rever, mesmo que de um relance, aquilo de que se despediu a tempos atrás, para matar a saudade. Mas o que percebemos desalentados, é que toda despedida é para sempre e que todo reencontro pode ser o renascimento de algo novo. Tudo vai depender dos seus olhos.

Lembro que me separei do meu irmão pela primeira vez quando éramos muito pequenos. Passamos um considerável tempo longe. Lembro disso de uma maneira um tanto quanto fragmentada. Uma mistura de fotos que vi da época, histórias das reuniões de família e de minhas recordações gastas, como se fossem sonhos de um tempo remoto. Quando nos revemos ele tinha uns três anos e eu quatro e não conseguíamos falar ou lembrar nossos nomes. Passamos a nos chamar de Nênm, era como se possuíssimos uma grande afinidade, coisas de outra vida ou coisas de meses atrás, rs. Mas esse período longe um do outro havia nos transformado e a distancia fez com que as tranformações gradativas paracessem graves e abruptas. O tempo havia nos mudado. Mas nos apresentamos novamente, nos demos nomes novos e continuamos grandes, novos e velhos irmãos de sempre.

Tempos depois nos separamos de novo. Agora eu tinha 21 anos e ele 20. Foi nesse período que descobri algo novo. Eu estava certo, despedidas são dolorosas, tristes. Não entendo como pode doer tanto. Sinto nesses momentos como se eu estivesse velando todos que se vão, pois sei que não voltarei a ver aqueles olhos, ao menos não como os via. Aquele jeito, não mais como antes. Aquela personalidade se tornará outra. Aquele sorriso ainda lindo, mas não mais o mesmo. Aquela figura, aquele ser, os detalhes, tudo se transfomará.

Sofri muito procurando primos que ficaram no passado. Amigos que nunca mais consegui rever. Pessoas que fizeram parte da minha história voltarem outras. Perceber que eu também não estava livre dessas tranformações.
Foi da penúltima vez que eu e meu irmão nos separamos que aprendi uma coisa muito especial. Foi no momento em que nos revemos. Eu estava muito nervoso, com medo, ansioso. Afinal era meu irmão “gêmeo” e eu não sabia se voltaria a revê-lo. Ele chegaria de manhã. Era uma dia morno, estava claro e alegre. Eu estava na sala, tentando não pensar nisso, quando ouvi a buzina do carro do meu pai. Lá dentro do cinza e velho pampa, que tem a minha idade, estava ele, o meu irmão. Confesso que não queria ir lá. Queria prolongar o máximo a imagem daquele irmão que cresceu comigo, que entendia meus olhos maus. Meu pai então gritou para que eu pegasse as chaves e abrisse o portão. Eu peguei o molho de chaves e fui até lá. Comecei a tremer e não conseguia encontrar a chave certa para o cadeado. Meu irmão nesse instante colocou a cabeça para fora do carro e gritou:

— Veja o tamanho do cadeado e procure quais chaves são proprcionais, depois leia o cadeado e procure o mesmo nome na chave, assim você vai eliminar o maior número de chaves e abrir mais rápido o portão.

Ali eu percebi. Era ele. Não éramos mais irmãos “gêmeos”, mas percebi que ele continuava analítico, calmo, centrado, sossegado e eu nervoso, ansioso, atrapalhado, repleto de um gênio inquieto. Aprendi ali, como se aquela chave abrisse minha cabeça, que não éramos os mesmos, mas lá no fundo nossa essência estava intocada, pois tudo o que acontece fica guardado em alguma parte de nós.

Não é só a casca, não é só o embrulho, não é ter apenas qualidades. Percebi que o conjunto deixa tudo mais interessante e gostoso. O arranjo do prato alimenta os olhos e o conteúdo mata provisoriamente a fome das várias gulas que temos. Se o prato ter um gosto exótico basta experimentarmos e beliscarmos de novo e de novo para passarmos a acostumar com o novo sabor e sem receios deixarmos a iguaria, naturalmente, se esparramar pela boca.
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4 comentários:

Matheus Pannebecker disse...

just wonderful!
parabéns pelo belo texto!

Simone - Pique-Pega disse...

Nao tinha visto esse texto. Só tenho uma coisa a diser, estou emocionada, e muito orgulhosa, bem vc sabe de que...
Você tem que escrever um livro, logo!

Unknown disse...

Maravilhoso!!!!!e um dom saber reconhecer seus sentimentos e falar deles com tanta clareza.Todo mundo acha algo que se entendifica em seu texto e pessoas que conseguem fazer isso acostumamos chamar de artista. Que dom maravilhoso que vc tem. Fiquei muito emocionada com o texto e por saber que vc e um grande atista. continua escrevendo, esse e o seu caminho.

Anônimo disse...

oi, bonito..bonito...bonitoo.. quero mais.. ue, cade?! nao para nao irmão...