sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A Roda

A superfície frágil sob seus pés era a única barreira para o abismo e isso lhe causava frissons de ciranda. Era capaz de sentir seu controle sumindo nos furinhos da peneira cravada no piso, escorrendo por suas pernas em toró, e pingando restos de integridade no roteiro da gravidade. Era visível e gritante como não suportaria por muito mais tempo essa situação. Dava para ver o corpo se molhando, enganado de febre, suor de um mal entendido.

Ele estava sendo violentado em brincadeira de criança. Tiravam as únicas faculdades de controle que ainda possuía sobre seu franzino corpo, era a primeira vez que realmente sentia seu tamanho de anão (é que sempre se sentia maior que de fato era). Que agonia! Estavam dirigindo seu caminho. Além da dor oblíqua em seu estômago o que mais o constrangia, nesse momento, era o fato dele próprio ter pagado para isso. O haviam convencido da sensação boa da voluptuosidade cíclica desse envolvimento. Afirmavam, de uma convicção que acariciavam seus ouvidos, a respeito da belezura que seria o abandono de si na mão do outro. Todos diziam, alguns gritavam embriagados da experiência recente, quando ele achava arriscado demais:

—Se entregue, se entregue, não tenha medo, será legal, você vai ver.

Ele então pensava consigo mesmo: Será mesmo que acham isso agradável? Não pode ser. Ou sou analfabeto de sentimentos ou sou letrado em cautela, pois sinto como se fosse me derramar até desidratar.

Essas experiências faziam com que suas bochechas corassem tanto, que em desenho animado todos diriam se tratar de duas maçãs do amor. Sentia uma vergonha danada de não se conter diante de sua companhia, uma mulher gigante, a verdade é que se sentia pequeno demais perto dela. Muito dos desentendimentos entres eles talvez fossem devido essas privações que ela causava nele.

Não se sabe se por excesso de cuidados e zelos ou culpa pela ausência destes, ela sempre o tratava como um inútil, o que sempre o aborrecia, afinal ele sabia muito bem escolher suas roupas, era meio desorganizado, mas era seu estilo, além de ser, também, completamente capaz de amar sem precisar de demonstrações constantes, é ele sabia que isso não era estilo, era limitação mesmo, no entanto gostava de fingir que não. Só que a despeito de todos esses encolhimentos, ela era a única capaz de esticar sua coragem, isso em um único toque que o embevecia do mais aconchegante e profundo conforto. Ele poderia ficar horas em seus braços “redomares”, hábeis a construir paraísos e sonhos encantados, sonolência sempre cortada com um beijo no final.

Ele sabia que era ela, a crescida de tudo, a de beijo doce, quem lhe dava força nesse redemoinho de sensações grandes, mas ainda assim ele não podia deixar de sentir o mundo a sua volta, rodopiando e girando como se não tivesse estômago. Seus pensamentos afrouxados de tontedão desgrudavam de sua mente nessas palavras sem força de voz:

— Esse mundo não come, ele não enjoa. Esse mundo não pensa. Esse mundo só roda e roda e nauseia.

Não gostava de sentir as oscilações do ambiente, elas sempre refletiam-se em seus sentimentos, sabia que quando se descontrolava espirrava insatisfação nos outros, não era vírus o que ele temia lançar nesses movimentos convulsos, mesmo que o nojo, murcho na comunhão do reflexo, sujasse as mangas da guardiã da sua vulnerabilidade. Isso pelo contrário até o comprazia, ver o total desprezo com que ela tratava tudo o que era afastador de seu amor, jamais vira algum reflexo de asco nos olhos dela, mesmo diante das mais miseráveis imundícies de seu corpo ou transgressões de sua alma, ela sempre o olhou como a mais pura natureza, fonte do maior asseio.

O que ele temia de polpa e caroço, de bagaço, de fruta inteira, mesmo sabendo de todo o poço de compreensão que estufava sua amada benfeitora, era jorrar tudo que estava consumindo seu interior, tudo o que não havia sido digerido direito. Era pavoroso demais cogitar a possibilidade de derramar em jorros frenéticos toda a porcaria que ele havia desfrutado as escondidas. Ele a tinha desrespeitado, não era digno de amor tão incondicional. Seu amor visceral por coisas estúpidas havia cometido sua carne de prazeres capitais.

O descontrole começava invadir seu corpo magro, sabia que não seria possível conter seus impulsos dilatados, que já alcançava normalmente proporções respeitáveis. Nesse instante não saberia dizer o que prevalecia em sua vontade, se o desejo de mentir e prolongar aquele momento infernal, que paradoxalmente permitia a continuidade de uma felicidade intacta e ainda lacrada, ou libertar toda podridão que o inchava de não poder mais respirar.

Em um transe de dor conseguiu alcançar por estantes uma espécie de projeção astral, alçada por meio da voz encantadora da mulher sentada ao seu lado, como se aquele timbre tivesse cessado sua respiração e com ela a vida e a dor, estendendo o alívio no compasso e ritmo daquela fala analgésica:

—Meu amor! Você está se sentindo bem? Diga o que foi? O que você tem?

Sua voz era não terna e seu olhar tão triste, que parecia sentir por telepatia todo aquele sofrimento. Mas ele era esperto demais, não se entregaria tão fácil. Ficou calado. A boca era o limite da sua impureza, o único estanque da larva azeda que o enchia de culpa. Não pôde dizer nada, mas seus olhos em uma tentativa desesperada de ser boca pronunciaram lágrimas de vergonha. Ele, no entanto, foi mais rápido que essa emoção desgarrada. Antes que a mulher grande sentada ao seu lado pudesse ter visto esse grito derradeiro, já havia se virado para o outro lado. Seu desespero ficou novamente suspenso quando sentiu as mãos dela procurando as suas, o calor febril que vinha delas amornou seu corpo gélido de morte. Outra vez ela lançou seu canto de sirena:

—Que mãos frias. Dê-me elas aqui, vou esquentá-las meu querido. Nossa que gelo. Está melhor?

Ele fez que sim com a cabeça. Mentiu, ele sempre mente, não sei como ainda não perceberam. Seus olhos sempre ficam vazios quando mente. Mas dessa vez mentiu, por sentir que não estava de todo mentiroso, sentia um presságio de melhoras. Emocionou-se quando percebeu que após esse primeiro momento de angustia foi capaz de ver mais longe, de sentir mais forte, de ver brilhar as luzes acima, abaixo e para todo lado que olhasse. Estava feliz, nem se lembrava mais de seu martírio hiperbólico ou de sua felicidade eufêmica. Não se lembrava de si ou dos outros. Achava a todos pequenos demais, simples demais. Mais lhe pareciam bonecos de plástico, fáceis de brincar, comuns, sem detalhes, todos iguais, ao menos de onde estava não conseguia notar as diferenças que tanto o encantava antes.

Não entendia, por que havia se aprofundado tanto? Para que havia permanecido tanto tempo lá embaixo onde o barulho é mais alto, onde a realidade é grande e onde a vista tem mais obstáculos? Agora se sentia bem melhor, estava na superfície, os sons eram como lembranças, a realidade era pequena e a vista era grande.

Não tinha mais medo de dizer o que queria, mas não disse por que descobriu que não precisava, na verdade não se importava mais. Estava livre dele mesmo, nem sentia o corpo. Não se lembrou de olhar para o lado, não teve curiosidade de saber como sua amada estava nesse seu novo momento. Ele estava mais seguro de si, sabia que a amava em brisa constante, sabia que a tinha a seu lado, de onde estava não tinha medo de ser abandonado, podia sentir o amor dela por ele, as suas mãos, sem precisar ouvir nada. O silêncio não o assustava mais, as palavras é que poderiam, talvez, perturbá-lo.

Essa sensação de estar distante de si mesmo, e ao mesmo tempo próximo, lhe pareceu coisa de alma. Não procurou entender melhor, estava bom assim. O mundo estava mais lento, tempo de quadro.

Num repente sua barriga começou gelar de novo, sua visão, em vertigem, se expandiu depressa demais, não conseguiu acompanhar a rapidez do infinito, era como se estivesse caminhando para um penhasco sem ter o controle das penas. Não estava mais gostando daquilo. Olhou para o lado e viu, novamente, a mulher grande, ela estava na mesma constância de pedra, não esboçava o mínimo terror no rosto. Ele não a entendia mais, apenas precisava dela como nunca precisou antes. Começou a apertar aquela mão, com dedos, anéis, palma e costas alheia de todo o perigo à volta. Ele a apertava como querendo acordá-la, chamá-la de volta a vida ou se contaminar de inércia. Mas calmamente a mão dela apenas o acariciava em uma cadência de ponteiro de relógio.

Sabia que não iria sobreviver a esse acontecimento. Cuidou de se despedir sofregamente de tudo do que sentiria falta, e percebeu que sentiria falta de tudo, até mesmo de sentir que estava morrendo. Chorou duas lágrimas silenciosas, sua dor mais parecia derramar pra dentro. E foi acumulando dor, acumulando medo, acumulando sentimento, acumulando frio e suor, quando sentiu a ameaça de se romper nos últimos instantes de vida, revelando todo seu segredo e estragar toda a memória que poderiam guardar dele, ou a ameaça de engolir o mundo e dentro dele se fazer aberto, de qualquer forma estragaria sua parte eterna.

A mulher do seu lado emergiu do transe que muito o sufocava, contaminada da inquietação. E como em uma maratona de revezamento, em uma troca de vigilante, o mundo voltou-se a ela que era objeto até então. Era complicado, para essa mulher compreender a decepção nos olhos dele, ela havia feito tudo o que imaginou desejosa de agradar, ou ao menos de parecer agradável. Há anos estava empalhada em si mesma, enferrujada não sabia como agir. É que sempre fora automática, amortecida de vida, mas acordou imersa em versão analógica, inteira manual.

Ela sentia que todo o amor que tinha dentro de si parecia não bastar para ele, mas fingia não ver aquele buraco negro ávido, assim ia fartando-o de um tipo louco de algodão doce e a saliva gulosa, daquela boca, derretia na velocidade de beija-flor todo aquele vazio feito de açúcar, como podia ser tão insaciável?

Ela o amava, sem saber se isso era sentimento ou costume. Não estava certa se ainda continuava viva depois de tê-lo conhecido, não conseguia desejar nada que não fosse para ele, não desejaria, absolutamente, tempo livre para ficar longe dele. Sua vida havia se transmutado nele, mas o mais impressionante dessa metamorfose é que ela ainda existia, havia se transformado nele, mas não era ele. O que diabos seria ela? De que substância seria preenchida? Afinal ela havia saído nele, e o que restara para essa criatura que ficara?

Isso quase nem lhe interessava mais. É que ele estava ali do seu lado e o contato com a vidinha dele, mesmo que fora dela, a alegrava de pisca. Era até mais certa dele do que dela mesma. Sentia como se sua réplica ainda tivesse um vinculo transparente grudado nela. O amava com egoísmo de quem ama a si mesmo, o apreciava como um narciso debruçado sobre si mesmo.

Questionava-se em pensamentos anêmicos demais para se realizarem: Como podia ser dois em um? Era verdade, eles não eram um, havia se esquecido de que já não eram mais, mas também sabia que não eram dois, preferiu pensar de objeto nessa situação.

Olhou pare ele com olhar de espelho, se arrepiava de tê-lo para si. Tinha a pessoa a quem mais amava no mundo. Rompendo os preceitos platônicos que não sustentam carne nem mortais, apertou sua mão ligando vida. Como o achava lindo, seus olhos brilhavam como água em orvalho. Percebeu de súbito que tudo parecia crescer quando próximo dela e diminuir quando distante. Era abnegada, não estava gostando de se sentir superior, pensou consigo: Será pecado?

Engraçado como se sentia impar, sozinha e bastante de si nesse momento. Esqueceu-se do amor de osmose que a tomava por inteiro, momentos antes. Estava sozinha de alma, não queria mais nada. Mentira estava mentindo, sim, isso era certo para qualquer um que olhasse de fora. Em momento algum havia soltado a mão de seu par, como se tivesse medo de se perder no vôo livre. Cansou de se ter, queria mesmo era cuidar de seu pequeno amorzinho. Ele era o único que se encorajava nela. Gostava tanto de se doar, esse ato a convencia que era sim cheia de alguma substância secreta que havia ficado nela após a separação de tempos atrás.

O mais engraçado ou trágico era que a proximidade física entre ambos não garantia contato de alma, viviam em planetas de mesma órbita, girando em torno de um mesmo eixo, mas eram povoados de realidades distintas.

Talvez fosse melhor contar essa história como realmente as histórias acontecem em nossas vidas, longe da experiência que eu sofri ontem à noite ao sentir o existir do outro, observando aquela gente; sem a fusão de vida daquele momento, assim seria mais rápido e direto, pois tudo o que vi foram apenas mãe e filho sentados em uma roda gigante

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Que tipo de filme?

Alguns dias atrás disseram que sou um filme que começa pelo final, daqueles alternativos, pouco divulgados. Sugeriram que tenho enredos aleatórios e atitudes imprevisíveis e que meus ápices iniciais deixam o restante das horas insossas.

Desconfio que provoco sentimentos contraditórios: de atração em quem não entendeu nada e de repulsa em quem divisou, mesmo que fortuitamente, uma possível intenção verdadeira em minha personalidade de gelo abrasado. Os demais, os que sobram, são seres flutuantes, perdidos no espaço infinito das sensações, na atmosfera sem gravidade de minhas seduções frígidas, absortos em meu mimetismo hipócrita.

Insinuaram que sou aqueles longos filmes independentes, que não sabemos se é uma comédia, drama, romance ou terror. Aqueles filmes que ficam sempre em uma constância perturbadora. O tipo de filme que exerce uma atração de imã, mas que raras vezes são revistos, que muitas vezes nem mesmo são escolhidos nas prateleiras da locadora. Filmes restritos a rodas de amigos, percebidos apenas nos elogios e em listinhas de top dez, quando o são, por vezes ficam guardados no particular, mas aí ninguém vai saber. Alguns justificam dizendo que são as freqüências de temperamentos oscilantes, em uma espécie de yin yang, onde tudo que é dito quer dizer o contrário, que afastam as possibilidades de um contanto mais diário.

Disseram que sou o filme de diálogos intermináveis, monólogos monótonos ou silêncios tagarelas e que por isso não basta ouvir as conversas, pois tudo na cena parece falar (isso foram os olhos que me confidenciaram). Espalham por aí que sou daqueles filmes onde os finais são o início da história.

Na verdade uma amiga apenas disse:

―O Tiago é um filme que começa pelo final.

Mas eu sei que as palavras são as que menos dizem algo em uma conversa.

domingo, 26 de outubro de 2008

Água e Melancia

Meu primeiro Conto

Na tarde, os últimos raios de luz amarela faziam com que a paisagem tomasse um ar de porta retrato empoeirado. O cenário em sépia clareou a escuridão do interior da garota sentada no portão, aquela luz invadiu seu corpo e denunciou todo o nada que enchia sua pele. Sentiu-se como uma lingüiça recheada de vento, e a consciência sonolenta de coisa nenhuma forjou sentimentos inventados, tão frágeis como bolas de sabão, onde o contato com as películas transparentes a entretinha.

Sua sensibilidade insensível era enigmática demais para sua mente decifrar. Deu à luz ao medo, um medo com traços e versões do que ela achava ser esse sentimento. Sempre fora a provedora, geradora que paria dúvidas, umas crias que possuíam seu DNA, sempre latentes, sempre misteriosos, nunca explicados, jamais finito. Se encolheu nos degraus que davam passagem a pequena casa laranja onde morava, como se tivesse num resguardo do remorso, contorceu-se abraçando-se aos joelhos em uma posição fetal, cuidando de mostrar que não podia ter dado a luz, era tão imatura quanto o abcesso que gerara, era toda semelhante a um clone híbrido gerado do seu vácuo.

Os últimos fiapos de sol apresentavam a presença da ausência e a solidez do espaço, que não eram vistos por não serem entendidos, mas ainda assim permaneciam ali, como parasitas nulos. Aquele farol a perseguia e entrava em sua mente, iluminando suas lembranças de faz de conta... Sentiu que não era nada além de uma fantasia de ser humano, uma lágrima encenada correu pelo seu rosto na tentativa de se sentir melhor, mas a única coisa que o cristalino pingo lavou foi o pó dourado que cobria sua tez alva. Assim, seu dia acabava sem ter ao menos começado, a exemplo de muitos outros passados. Respirando fundo, enxugou a lágrima vã, e com os últimos raios de sou caminhou até a área, que precedia a porta de entrada da casa, e prolongou a luz amarelo nostálgico ao tocar o interruptor.

Sentia o não sentir, queria dormir, entrou, negou o jantar oferecido por sua mãe. Tomou um banho demorado, mas não tão purificador como ela gostaria, sentou no vazo sanitário e pensou no nada, tentava refletir, mas sua mente apenas sabia o começo do que queria analisar. Ficou confusa e desanimada, seu script era chato e incoerente, seu papel de ser humano não a estimulava a continuar na peça, pensou em se libertar do figurino, mas lembrou que tinha medo do que estaria por traz daquelas camadas de pele e dos grandes olhos vazios de uma cor que ninguém mais possuía. Lembrou que podia ser oca, como a boneca-abajur de porcelana, um mosaico de células que a qualquer momento poderia se despedaçar.

Dormiu profundamente, durante horas, imóvel, estava exausta, suspirava baixinho, um cansaço velho e pesado sentado sobre ela cantava uma musiqueta abafada e grave como se quisesse compensar seu fardo encima dela, se condoía de pesar sobre sua tão querida companheira, entristecia-se por ter de se afastar para vê-la vivaz outra vez.

Acordou faminta no outro dia de manhã, a casa estava quieta e em paz, sabia que todos ainda dormiam, pois sentia que estava sozinha, não percebia a presença de ninguém no ar. Adormecera com a janela aberta e acordará com o calor morno do sol da manhã no rosto, mas de qualquer forma teria despertado a qualquer momento. Espreguiçou-se lentamente, deliciou-se na cama. Sentir seu corpo fresco em choque com aquele tépido início de dia era um prazer incontrolável. Levantou-se e plantou seus pés descalços no chão frio, surpreendendo-os de um susto, no qual lançou um sufocado gemido quase sexual. Os gorjeios dos pássaros no quintal impeliam-na com uma força descomunal para fora da cama e um desejo irresistível de tomar água a invadiu. Os chilreares a deixavam concentrada, limpa de pensamentos, era como se meditasse, só existia aquilo.

Já na cozinha lavada de luz, abriu a geladeira, tomando com uma elegância burguesa, que não lhe era de costume, uma jarra de água e uma taia de melancia. Seus movimentos nessa manhã eram tão graciosos que ela mesma os admirava, prolongando-os e gozando de seus prazeres egoístas o máximo de tempo possível. Em seu rosto sempre um sorriso sensual, seduzindo objetos e espelhos. Bebeu, com a voracidade e elegância de um lince, três copos grande de água e depois matou sua fome com a melancia. Escolheu melancia para continuar matando a sede ao comer.

Sentada na cozinha sob um feixe de luz, olhou fixamente para ponto nenhum e recordou o dia anterior e todo o seu vazio desesperador, ainda se sentia oca, só que agora estava sitiada por sensações diversas, e sentia-se invadida nessa manhã, quase transbordando, seu vazio agora estava sendo ocupado por: chilreio de pássaros, de uma frouxidão gostosa, por água e melancia. Desconfiou, então, que suas possibilidades eram ilimitadas, podia ser preenchida por qualquer coisa, seu vazio era infinito, seu espaço era sem medidas e ali caberia o mundo se ela quisesse.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Paladar de Infância

O intuito desse blog era relatar todos os meus dias em uma espécie de diário, mas percebi que isso não ocorreu, talvez por minha repulsa por aquilo que se torna regra em minha vida. As únicas que ainda consigo seguir são as que os outros me impõe. Bem! Isso não é bem uma regra, é mais um tipo de defesa reversa, uma liberdade falsária. Eu me calo, me omito e não me responsabilizo pelo desfecho dessa história. Me escondo atrás dos controladores cordõezinhos transparentes. Que patético! Entre uma puxada de linha e outra o ventríloquo não percebe, mas sua marionete é oportunista, principiante e acaba se mostrando em um ato aqui e outro ali. Assustado o fantoche percebe, que ainda assim, nesses momentos falhos, parece não ter controle nenhum sobre si e passa a duvidar se sua voz é realmente a dissimulação do senhor que fala pelo canto da boca.

E aqui nesse blog o que tenho tentado fazer é colher meu ser desintegrado. Meu ser que perde em alguns momentos as linhas invisíveis que o controla. Meu ser que esfacelou-se em grãos pequenos demais para serem notados. Em fragmentos que assumem, muitas vezes, uma aparência insignificante de casca, embalagem que cobre o que realmente importa e é jogada fora na beira de alguma estrada ou na lata de lixo seletivo...

Quando eu era criança, antes do politicamente correto, ficava imaginando aquele saquinho plástico que cobriu meu chocolate, a balinha do meu irmão, o bubbaloo da minha irmã e outros objetos que ficariam jogados na estrada de chão. Lá naquele deserto solitário. Ficariam ali desbotando a luz do sol e sumindo sob a poeira. Eu fui o tipo de criança que imaginava mais as aventuras ou desventuras daqueles objetos que cobriam meus lanches do que o percurso que a comida faria no meu sistema digestivo.

Era o mesmo com os papéis de presente. Desmascarar os embrulhos me fazia sentir uma espécie de decepção dolorida ao descobrir que a emoção maior já tinha ido embora com a abertura da embalagem:
Aquelas sensações efêmeras das mãozinhas nervosas, dos olhinhos lânguidos de uma permanente aparência de sonolência brilhando do mistério, do frio na barriga em um misto de gozo e medo incerto, da imaginação abrasada bolando a idéia daquela pessoa pensando em mim ao comprar o presente, ao embrulhá-lo. Eu estava lá sem ao menos saber, na mente, nas lembranças que deve ter impulsionado a pessoa a comprar. Pensaram em mim, gastaram um tempo comigo.

Enquanto a efemeridada do tempo ligeiro e escorregadio fazia das minhas mãos gordinhas, mas muito pequenas, ampulheta eu deixava toda a areia escorrer entre meus dedos soados. Cansado dessa brincadeira eu tentava escapar do círculo claustrofóbico que gritava tic-tac sem parar. Em acessos de possessão o cruel relógio esbravejava na figura de um ditador de bigodinhos e calças engraçadas rebolando ritmicamente e o meu medo fazia com que me desequilibrasse e minhas mãos desastradas, mais uma vez, se atrapalhavam no meio do malabarismo deixando cair os cristais de pura satisfação.

O papel de presente após aberto era desprezado ou quando muito jogado embaixo da cama, na crença de que papeis de presente atrai mais presentes. Desprezado, também, era o turbilhão de emoções que antecedia a abertura do presente. A realidade ali naquele minuto perdia o encanto da imaginação. Então vinha um desalento que me levava a um pântano de águas serenas, de uma calmaria assustadora. O que havia em mim era um torpor de animal. Preza de algum caçador não tinha medo, o que sentia era a necessidade de expulsar aquela felicidade que arrepiava minha espinha de um frio cortante e sadicamente evaporava lentamente. Trovões longínquos estrondavam sobre a recordação de momentos insípidos, clarões revelavam que esses momentos pareciam ser maioria, o que aumentou o lamento grave daqueles estrondos que mais pareciam um choro abafado. Os regalos que me deram alegria aumentavam ainda mais os sofrimentos que antes pareciam pequenos.

Pensam que dramatizo demais, talvez sim, é que não consigo rir para não chorar, não por dentro. Eu consigo ver o cômico no seriado de drama a que todos elogiam. Consigo perceber a dor exagerada que puxa o riso de tão surreal em filmes por aí a que todos aclamam como extremamente engenhoso, mas não consigo rir e quando o faço é um sorriso desesperado, plástico, incompreensível.

Sempre pensava quanto a isso: Inteligente demais para uma gargalhada faceira, admiração sim pela astucia de quem consegue fazer uma dramédia e tomar uma limonada no final. Refresco, por sinal, difícil de se temperar: ora aguado, ora ácido demais, ora doce de menos. Ou então exclamava: Muito dolorido para uma risada sincera, dentes mostrando-se complacentes, talvez.
Meus risos francos são débeis, histéricos, estéreis, não conseguem parir. Eles surgem de repente, inusitados, sem lógica ou explicação. São de um frescor, de um sabor e se espalham ali pela boca. Lá derramam-se, misturam-se com o ambiente e esvaem-se com o instante. Insubstituíveis, inigualáveis entre si. Não são parentes, não se conhecem. Vivem assim. Não sabem que são passageiros, não querem saber. Interessam-se mais em escorregarem boca a fora, criaturas que não sabem de si.

Tudo o que foi dito até aqui veio para que eu pudesse falar da partida do meu irmão. Ele foi morar com minhas tias, com a minha vó, meu vô. Lugar para onde eu sempre corri, lugar onde o tempo não anda. Quem disse que o tempo não pára para que concertemos nosso coração não conhece esse lugar. Lá ele pára. Ao menos é o que eu pensava, mas não é verdade o tempo não parou.

Eu morei lá, nesse lugar, quando criança. Depois me mudei e voltei com 11 anos e depois com 18 e agora percebi que o que me fez pensar que o tempo havia parado foram os dias em que me sentei no meio fio e fiquei olhando o céu. Deitado no canteiro de uma avenida voltava a ser a criança que um dia fui. Eu era tão pequeno, tão cheio de vida, tanta vida que sentia uma constante febre, como atacado de uma infecção. Eu era só um bichinho no mundo. Eu gostava de sentir aquilo. Tinha muitos planos e muito espaço para sonhar. Tinha a vida inteira, o tempo todo. Me sentia de certa maneira infinito. Feliz de verdade, triste de verdade, imerso em sentimentalidades de verdade. Meu estômago as vezes não suportava tanto desejo, embrulhava-se, eu me sentia mole, suava frio, me sentia fraco, leve, então eu vomitava e flutuava. Era como morrer e renascer limpo.

Quantas possibilidades para mim criança. Eu podia deitar no chão fresquinho da casa ou na terra úmida, da sombra de alguma árvore, e não fazer nada, apenas arder envolto em sentimentos e reparar, prestar atenção no percurso de tudo ao meu redor, nos sons, nas cores. Eu podia ficar ali quanto tempo desejasse, nunca era tarde. O tempo? Esse não me preocupava, eu estava na vida e ela era grande demais para mim, tão grande que eu me perdia e dava gritinhos e soluços de prazer. Que bom que era! Mas eu cresci, rápido demais, e essa grandeza engoliu a vida. A vida selvagem que era imensa, do tamanho do infinito, livre, está agora dentro de mim, perdida.
Agora vi que o tempo não parou mesmo. Descobri que ele foi e é apenas relativo. Tudo depende do ângulo que você o espreita. E a visão que se tem quando o espaço é maior do que a vida não é muito agradável. O vácuo é monótono e não dá para senti-lo. Dá um vazio...

Casca de balinha mochileira. Papéis de presentes que embrulham maravilhas secretas. Olhos sorridentes e boca cega. Tempo relativo. O que quero dizer com tudo isso? O que meu irmão tem a ver com tudo isso?

Nada, além da sensações que surjam e nasçam desta leitura. Meu texto é despretensioso. Não quero que sinta nada além do que sinta ao ler. Se não tiver coerência? Saiba desde já que minha cabeça é assim. Se não tiver lógica? Prepare-se, eu já afirmo agora e poupo seu tempo: não tem.

Voltemos ao assunto. Eu e meu irmão fomos criados juntos. Quando crianças éramos confundidos com gêmeos. A família nos chamava como a uma dupla: o nome dele era como o meu sobrenome, sempre ditos juntos, como uma palavra composta que separada perde o significado. Ele conheceu partes profundas minhas. Partes que não mostro a ninguém. Vivemos tanto tempo ligados que quando não estávamos juntos era como se as pessoas achassem que eu não estava completo e perguntavam por ele. Passamos tantos momentos juntos, que quando eu falava sobre algo não precisava contextualizá-lo, pois ele estava lá quando aconteceu.

Mas fui uma criança que não sabia me relacionar com sentimentos de maneira convencional, e quem estava perto de mim sofria as consequências. Estava habituado a lidar com acontecimentos práticos e externos a mim, seguindo o que me diziam para fazer ou imitar o que eu observava distraidamente por aí. Entender meus pensamentos e emoções foi e é algo penoso e doloroso, pois só há como fazer isso sozinho, sem palpites ou conselhos, mapas ou receitas. Afinal como é possível dizerem o que eu estou sentindo? Tenho que conviver com essa dúvida, se o que estou sentindo é real ou estou forçando.

Eu lembro que tinha medo de não sentir nada, de ser do mal, de ser insensível, de ser prejudicial. Então eu maquinava situações para me expor a sentimentos diversos. Cometia as piores atitudes para ter certeza de que eu era humano, que tinha alguém ali que se preocupava, que sofria com ações indelicadas, danosas. Eu era perverso por medo de ser cruel, por incerteza. Se eu fosse desumano? Essa dúvida me aproximava cada vez mais dos meus temores só para que eu pudesse sentir remorso dos meus atos.

Uma vez matei um gatinho exprimido em um cano. A dor, a culpa e a vergonha por tal feito me corroeram por anos. Digo para todos que eu era criança e só queria vê-lo sair na torneira, como nos desenhos animados que eu via. Tudo mentira. Eu já sabia que não era tão inocente assim e essa dissimulação me assustava. No entanto foi essa a forma que eu encontrei para provar para mim mesmo que eu tinha bondade ali dentro, fazendo os outros sofrerem e observando se eu sentia alguma coisa vendo aquilo. Quantas vezes quando criança eu com os olhos cheios de lágrimas e o coração apertado, doendo no peito, dizia a minha mãe que eu não a amava e que não via a hora de crescer e sumir, só para ter certeza que o que eu sentia por ela era verdadeiro. Tantos amigos eu afastei, maltratando-os só para provar que eu realmente gostava deles e sofreria com as partida que eu provoquei. Me mutilei, senti minhas entranhas serem rasgadas quando fazia terror psicológico, dizendo que se meu pai morresse eu nunca mais iria ver minha irmã mais nova, pois o que nos ligava era meu pai, já que nossas mães eram outras. Quase matei minhas emoções mais puras destratando meu irmão constantemente. Meu amor visceral era destrutivo e eu não dizia para ninguém os verdadeiros motivos de minhas atitudes. Sabia que ninguém entenderia. A lógica do meu amor não faz sentido nem para mim.

O mais impressionante é que mesmo assim meu irmão me compreendia. Ele sabia que nesses meus momentos de fúria, dor e atitudes nocivas, tinha muito mais do que só maldade. Era como se ele conseguisse ver em meus olhos um brilho diferente. Algo contraditório que me desmentia, me entregava, bem lá naquela profundidade castanha em minha face. Essa compaixão suscitou nele, mais do que em mim, a certeza do humano assustado, encolhido, angustiado, com medo, que se destruía mais do que atacava, bem ali escondido nos meus olhos.

O que sobrava depois desses acessos irracionais, na maior parte das vezes, era um sofrimento agudo e forte na hora das despedidas, pois talvez eu tivesse destruído tudo de bonito que contruíram ou pudessem guardar de mim.
Na verdade nunca gostei de despedidas, para mim elas sempre foram definitivas, o tempo me ensinou isso: A pessoa, o ser, o objeto, o lugar que eu voltava a ver nunca eram os mesmos, eram sempre outros. As pessoas eram outras, eu não era o mesmo. Os olhos diferentes já não reconheciam o que observavam, eles ficavam ligados, desesperados, correndo em todas as direções, em uma tentativa angustiante de rever, mesmo que de um relance, aquilo de que se despediu a tempos atrás, para matar a saudade. Mas o que percebemos desalentados, é que toda despedida é para sempre e que todo reencontro pode ser o renascimento de algo novo. Tudo vai depender dos seus olhos.

Lembro que me separei do meu irmão pela primeira vez quando éramos muito pequenos. Passamos um considerável tempo longe. Lembro disso de uma maneira um tanto quanto fragmentada. Uma mistura de fotos que vi da época, histórias das reuniões de família e de minhas recordações gastas, como se fossem sonhos de um tempo remoto. Quando nos revemos ele tinha uns três anos e eu quatro e não conseguíamos falar ou lembrar nossos nomes. Passamos a nos chamar de Nênm, era como se possuíssimos uma grande afinidade, coisas de outra vida ou coisas de meses atrás, rs. Mas esse período longe um do outro havia nos transformado e a distancia fez com que as tranformações gradativas paracessem graves e abruptas. O tempo havia nos mudado. Mas nos apresentamos novamente, nos demos nomes novos e continuamos grandes, novos e velhos irmãos de sempre.

Tempos depois nos separamos de novo. Agora eu tinha 21 anos e ele 20. Foi nesse período que descobri algo novo. Eu estava certo, despedidas são dolorosas, tristes. Não entendo como pode doer tanto. Sinto nesses momentos como se eu estivesse velando todos que se vão, pois sei que não voltarei a ver aqueles olhos, ao menos não como os via. Aquele jeito, não mais como antes. Aquela personalidade se tornará outra. Aquele sorriso ainda lindo, mas não mais o mesmo. Aquela figura, aquele ser, os detalhes, tudo se transfomará.

Sofri muito procurando primos que ficaram no passado. Amigos que nunca mais consegui rever. Pessoas que fizeram parte da minha história voltarem outras. Perceber que eu também não estava livre dessas tranformações.
Foi da penúltima vez que eu e meu irmão nos separamos que aprendi uma coisa muito especial. Foi no momento em que nos revemos. Eu estava muito nervoso, com medo, ansioso. Afinal era meu irmão “gêmeo” e eu não sabia se voltaria a revê-lo. Ele chegaria de manhã. Era uma dia morno, estava claro e alegre. Eu estava na sala, tentando não pensar nisso, quando ouvi a buzina do carro do meu pai. Lá dentro do cinza e velho pampa, que tem a minha idade, estava ele, o meu irmão. Confesso que não queria ir lá. Queria prolongar o máximo a imagem daquele irmão que cresceu comigo, que entendia meus olhos maus. Meu pai então gritou para que eu pegasse as chaves e abrisse o portão. Eu peguei o molho de chaves e fui até lá. Comecei a tremer e não conseguia encontrar a chave certa para o cadeado. Meu irmão nesse instante colocou a cabeça para fora do carro e gritou:

— Veja o tamanho do cadeado e procure quais chaves são proprcionais, depois leia o cadeado e procure o mesmo nome na chave, assim você vai eliminar o maior número de chaves e abrir mais rápido o portão.

Ali eu percebi. Era ele. Não éramos mais irmãos “gêmeos”, mas percebi que ele continuava analítico, calmo, centrado, sossegado e eu nervoso, ansioso, atrapalhado, repleto de um gênio inquieto. Aprendi ali, como se aquela chave abrisse minha cabeça, que não éramos os mesmos, mas lá no fundo nossa essência estava intocada, pois tudo o que acontece fica guardado em alguma parte de nós.

Não é só a casca, não é só o embrulho, não é ter apenas qualidades. Percebi que o conjunto deixa tudo mais interessante e gostoso. O arranjo do prato alimenta os olhos e o conteúdo mata provisoriamente a fome das várias gulas que temos. Se o prato ter um gosto exótico basta experimentarmos e beliscarmos de novo e de novo para passarmos a acostumar com o novo sabor e sem receios deixarmos a iguaria, naturalmente, se esparramar pela boca.
...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

ESPELHOS QUE REFLETEM O NADA


I
SÚPLICAS DE UMA TARDE MORIBUNDA


Mais um final de semana, mais um final de tarde, mais um final de dia... Finais, finais, sempre previsíveis (Acho que a inércia os mantém assim. Um bumbum inativo e um cérebro inventivo? Convenhamos não é uma competição justa. Hum...). E definitivamente meu traseiro estava em uma disparada vantagem nessa disputa, percebi que sua tática era manter os pés no chão, melhor, as nádegas no sofá. Enquanto isso a minha cabeça estava nas nuvens.

Interessante duelo, daria até um original estudo comportamental: “Disparidades e Paridades: bundões reais e sonhadores utópicos”; mas enquanto os estudiosos não descobrem essa intrincada relação vamos deixá-la aqui, flutuando nesse Universo Paralelo.
A tarde convalescente veio a óbito às 7:00 horas em 9 de julho de 2008 no fim de um afogadiço dia quente, em seu epitáfio os dizeres:
Se...( não consegui compreender essa parte, a lápide estava um tanto quanto borrada, homenagem do senhor bumbum) diferente... (com essas palavras o Senhor Razão encerrou.)
Se... Diferente...


II
A NOITE É UMA CRIANÇA E O CHARUTO É DESTABACADO

Após o lamentável funeral de uma estúpida tarde, o indefinível crepúsculo em chiaroscuro transpôs gradativamente as cores de manga madura, quase gemas de ovos caipira, dando lugar a uma tonalidade blue berry ou seria amora? Tanto faz, pois o bonito mesmo era aquela cortina degradê se desenrolando em noite.
O cheiro molhado do sereno fez com que eu me sentisse invadido por sentimentos de possibilidades, talvez fossem as brisas suaves, soprando aquele calor morno maçante... Que é verdade, de manhã prometia... Inícios, inícios lavados e repletos de vida e esperança (há algo mais revigorante e animador que um caderno branco, o primeiro dia de férias, a manhã de um domingo e filhotinhos, tudo novinho?)

E sim, eu tinha uma noite todinha pela frente. Claro! Não era um dia tedioso que havia de me esmorecer, e afinal de contas não havia sido tão mal assim. Fiquem sabendo que a minha sala de estar é uma companhia das mais agradáveis e, acreditem, juntamente com o meu televisor consigo divagar horas a finco sobre os mais variados assuntos. Tem também o sofá marrom aveludado, que é sobretudo confortável, e por que não dizer reconfortante! Ah aquele sofá!!! Grande companheiro que me embala nos sábados a noite.

Nesse momento saudei a noite gritando:
Ascendam os charutos, destabacados, por favor, (Salute). Nasceu!! E a noite é uma criança.

III
AQUARELAS QUE ME ABSORVEM, ONDAS QUE ME COSPEM


A janela do quarto emoldurava quadros e mais quadros, sempre combinando com o mundo em volta, a melhor decoradora que já conheci. E o sol!!! Esse se despedia com os últimos raios laranja. O pátio fronteiriço da casa recebia um banho de fios de ouro e o quarto era invadido por uma atmosfera de seiva cristalizada de alguma árvore jurássica, deixando tudo com um sentimento paradoxal de alegria e dor. Assim, como é a misteriosa sensação de saudade que nos reaviva momentos por meio de recordações, os quais conforme a falta que faz é proporcional a dor que se sente. Tardes são os momentos finais, o apagar do flash que aproveita os últimos raios vermelhos para revelar uma fotografia sépia, que ficará desamparada na câmara escura, lutando para ser relevante e sobreviver na memória.

Meu espírito, apesar de aberto e revigorado pelas brisas noturnas, não estava tão colorido quanto aquele quarto jujuba (da minha irmã), o que gerou um pequeno contraste. Eu estava lá, no instante que a noite nasceu, inerte olhando o monitor do computador e imaginando as tais ondas eletromagnéticas emitidas por aparelhos eletrônicos, então apoiei meus cotovelos sobre a mesinha branca com detalhes em rosa choque, que fica entre duas camas com lençóis tutti-frutti e paredes de um tom de vitamina de abacate rala, Sim!!! O quarto tem uma decoração clichê de propaganda de absolvente, no entanto já foi pano de fundo para incontáveis episódios de temáticas bem peculiares, esse quarto também tem o misterioso poder de me fazer salivar desejando batidas de morango, não explicarei esse fato, pois não encontrei ainda alguma razão no meu consciente para explicar tal comportamento, serão as cores?

Fiquei ali salivando, debruçado, fitando o monitor que estava em estado de espera (acabei descobrindo que é uma grande terapia, até mesmo hipnotizante, aquela logomarca do Windows se aventurando por toda a escuridão da tela, quanta coragem daquela marquinha deslizante, aquilo mais parecia uma tela de auto-ajuda). Retornei para uma postura ereta, sentado na cadeira estofada, fixei os olhos na tela do computador e me deixei invadir por essas tais ondas, precisava sentir alguma coisa ou acabaria enlouquecendo. Eh não foi dessa vez, ainda continuei só e não senti nada que não fosse alguma criação do meu cérebro, era a imaginação na tentativa de me confortar.

IV
DESCONHECIDO ÍNTIMO

A noite recebi visitas e tive que interromper minha tentativa de manter contato com as ondas eletromagnéticas, fui convidado para um programa, na verdade eu não estava com vontade de fazer nada, mas vi ali a chance de fazer alguma coisa diferente, de testar se realmente estamos fadados a liberdade.

Sobre liberdade eu posso dizer, ou ao menos imagino que muita coisa é uma questão de escolha, mesmo que sejam inconscientes, penso que cada passo não está marcado ou predefinido, não ensaiamos as pisadas, os sapateados o caminho ou as posições, nada acontecerá até nos lançarmos no palco, na arena, no estádio... Bom, eu não sei como você encara a vida... E sim, claro que podemos planejar, meditar, refletir, pensar ou seja lá quantos termos existem para definir precaução, cuidado, advertência, atenção e tantos outros nomes, que basta procurarmos um dicionário para vermos os sinônimos de cada uma delas, com suas particularidades, todas tentando expressar os sentimentos, todas tão insuficientes, tão pequenas, mudas.

Quanto aos ensaios, precisamos perceber que eles acontecem diante da platéia, com todos assistindo suas tentativas, seus esforços, medos, falhas, intimidades, acertos, vitórias, derrotas, conquistas, fracassos. Não tenha medo nem vergonha, pois se você olhar bem, verá que a platéia não é bem uma platéia, mas um monte de tablados, arenas, estádios... E estão todos tão preocupados consigo mesmos que duvido que sobrará tempo para assistirem ao seu espetáculo. E um conselho, quando você estiver bem cansado, descanse um pouco, assista ao seu púbico, observe-os, lá terá muito de você.

Hoje eu não estava a fim de sair de casa, mas decidi descer do meu palco solitário e invadir outros campos, respirar outros ares e viver outros contextos. Nessa aventura acabei percebendo que somos mais do que competições entre o triste e o feliz, entre o amor e o ódio, entre o dia e a noite, mais que uma guerra de oposições, mais que um maniqueísmo sem fim.

Hoje, ao menos hoje, eu me senti feliz por ser oco, por ser nada, por não ser sim nem não, por não ser fogo nem água, deus ou demônio, medo ou coragem. Hoje eu nem estou no meu palco, hoje eu simplesmente não sou e acabei me contradizendo, pois percebi que o tudo é um grande nada. Há sim opostos, mas não há uma competição, tudo é a mesma coisa refletida em um grande e velho espelho, e todos esses opostos são as inversões de um reflexo no espelho ou na lágrima, em uma poça de lama, nos olhos de alguém, tudo que nos desdobre e nos ligue de alguma maneira. E quanto mais o ser refletido se desconhece, maior é o choque, maior será a diferença, maior é a distância... O reflexo nos apresenta a nós mesmos e quando não nos reconhecemos, passamos a conhecer um
desconhecido mais íntimo que imaginamos.
Assim foi meu sábado: final de um dia quente, começo de uma noite fresca e a descoberta de um reflexo de olhos vazios...

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Sobre cacos, ciscos e pós...

Sabe quando você encontra pedaços seus espalhados pelo globo? É uma sensação estranha, como se durante a vida fôssemos colhendo partes nossas, não necessariamente conscientes disso, que por algum motivo ou não, estão soltas por aí.
Às vezes, sinto que não sou inteiro, que estou quebrado, envolto em uma incompletude incompreensível que não se pode nem ao menos definir ou explicar como é. Talvez essa seja mais uma falha, mais uma capacidade esperando para ser encontrada.
Sentir saudades de algo que não viveu; deparar-se com acontecimentos futuros que parecem terem acontecidos antes de o termos vivido, em um misterioso déjà vu; encontrar-se parcialmente na fala de outros; se vê descrito em algumas páginas de um livro que dá a impressão de terem sido ditadas por alguns de seus sentimentos mais escondidos; assistir atores ou atrizes interpretando trechos secretos de sua vida; perceber em um relance o olhar de uma pessoa que parece nos conhecer melhor que nós mesmos... partes nossas no mundo e partes do mundo em nós.
Recolherei alguns dos meus cacos, ciscos e pós espalhados por aí e depositarei aqui nesse blog.
Quem sou eu?

"Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim a importância de Catedral." (Manoel de Barros, Retrato do Artista Quando Coisa. Record – pág. 21)



Mais grãos de mim:

“Como defesa contra esse ambiente” hostil “”,... Começa a fingir, a esconder a sua alma; e à força desse contínuo fingir, desse perpétuo dissimular, adestra-se na arte da mentira. E por tal forma a ela se habitua, que não mais a abandona (pág: 5).”

“Tímido e temerário ao mesmo tempo, generoso, depois egoísta, hipócrita e cauteloso, e pouco mais adiante rompendo o efeito de todas as sua artimanhas com imprevistos acessos de sensibilidade e de entusiasmo, ingênuo como uma criança, e ao mesmo tempo calculista como um diplomata, ele parece composto de disparates. Impossível deixarmos de o julgar ridículo e afetado. Ele é antipático a quase todos ... E com muita razão, pelo menos em primeira vista. Perfeitamente incrédulo, e perfeitamente hipócrita... Odeia aqueles com quem vive... Que monstro e que paradoxo! Quais são os indícios que nos levam a reconhecer um caráter natural? Será preciso termos encontrado anteriormente algum semelhante? De forma alguma, pois a nossa experiência é sempre limitada, e há inúmeras espécies de almas que nós nunca notamos ou nunca compreendemos;...Um caráter é natural quando está de acordo consigo mesmo e todas as suas contradições derivam de certas qualidades fundamentais, como os diversos movimentos de uma máquina partem todos de um único motor. As ações e os sentimentos só são verdadeiros por serem conseqüências, e obtém-se a verossimilhança desde que se aplique a lógica do coração...Ele tem por mola um orgulho excessivo, apaixonado, sombrio, incessantemente ferido, irritado contra os outros, implacável consigo mesmo, e uma imaginação inventiva e ardente, isto é, a faculdade de produzir, ao choque da menor circunstância, idéias em abundância e de nelas se absorver. Daí uma concentração habitual, um retorno perpétuo sobre si mesmo, uma atenção incessante recolhida e ocupada em interrogar-se, em examinar-se, em construir um modelo ideal a que ele se compara, e pelo qual se julga e se conduz. Conforma-se a esse modelo, bom ou mau...Com os olhos fixos em si próprio, ocupado em violentar-se, a suspeitar-se de fraquezas, a censurar-se as próprias emoções, ele é temerário para que não lhe falte coragem, lança-se nos piores perigos por medo de ter medo...Esse modelo... Ele o “criou” e é essa a causa de sua originalidade, de sua esquisitice... (pág: 15,16)”.O vermelho e o Negro( crônica de 1830/ H. Taine)