Meu primeiro Conto
Na tarde, os últimos raios de luz amarela faziam com que a paisagem tomasse um ar de porta retrato empoeirado. O cenário em sépia clareou a escuridão do interior da garota sentada no portão, aquela luz invadiu seu corpo e denunciou todo o nada que enchia sua pele. Sentiu-se como uma lingüiça recheada de vento, e a consciência sonolenta de coisa nenhuma forjou sentimentos inventados, tão frágeis como bolas de sabão, onde o contato com as películas transparentes a entretinha.
Sua sensibilidade insensível era enigmática demais para sua mente decifrar. Deu à luz ao medo, um medo com traços e versões do que ela achava ser esse sentimento. Sempre fora a provedora, geradora que paria dúvidas, umas crias que possuíam seu DNA, sempre latentes, sempre misteriosos, nunca explicados, jamais finito. Se encolheu nos degraus que davam passagem a pequena casa laranja onde morava, como se tivesse num resguardo do remorso, contorceu-se abraçando-se aos joelhos em uma posição fetal, cuidando de mostrar que não podia ter dado a luz, era tão imatura quanto o abcesso que gerara, era toda semelhante a um clone híbrido gerado do seu vácuo.
Os últimos fiapos de sol apresentavam a presença da ausência e a solidez do espaço, que não eram vistos por não serem entendidos, mas ainda assim permaneciam ali, como parasitas nulos. Aquele farol a perseguia e entrava em sua mente, iluminando suas lembranças de faz de conta... Sentiu que não era nada além de uma fantasia de ser humano, uma lágrima encenada correu pelo seu rosto na tentativa de se sentir melhor, mas a única coisa que o cristalino pingo lavou foi o pó dourado que cobria sua tez alva. Assim, seu dia acabava sem ter ao menos começado, a exemplo de muitos outros passados. Respirando fundo, enxugou a lágrima vã, e com os últimos raios de sou caminhou até a área, que precedia a porta de entrada da casa, e prolongou a luz amarelo nostálgico ao tocar o interruptor.
Sentia o não sentir, queria dormir, entrou, negou o jantar oferecido por sua mãe. Tomou um banho demorado, mas não tão purificador como ela gostaria, sentou no vazo sanitário e pensou no nada, tentava refletir, mas sua mente apenas sabia o começo do que queria analisar. Ficou confusa e desanimada, seu script era chato e incoerente, seu papel de ser humano não a estimulava a continuar na peça, pensou em se libertar do figurino, mas lembrou que tinha medo do que estaria por traz daquelas camadas de pele e dos grandes olhos vazios de uma cor que ninguém mais possuía. Lembrou que podia ser oca, como a boneca-abajur de porcelana, um mosaico de células que a qualquer momento poderia se despedaçar.
Dormiu profundamente, durante horas, imóvel, estava exausta, suspirava baixinho, um cansaço velho e pesado sentado sobre ela cantava uma musiqueta abafada e grave como se quisesse compensar seu fardo encima dela, se condoía de pesar sobre sua tão querida companheira, entristecia-se por ter de se afastar para vê-la vivaz outra vez.
Acordou faminta no outro dia de manhã, a casa estava quieta e em paz, sabia que todos ainda dormiam, pois sentia que estava sozinha, não percebia a presença de ninguém no ar. Adormecera com a janela aberta e acordará com o calor morno do sol da manhã no rosto, mas de qualquer forma teria despertado a qualquer momento. Espreguiçou-se lentamente, deliciou-se na cama. Sentir seu corpo fresco em choque com aquele tépido início de dia era um prazer incontrolável. Levantou-se e plantou seus pés descalços no chão frio, surpreendendo-os de um susto, no qual lançou um sufocado gemido quase sexual. Os gorjeios dos pássaros no quintal impeliam-na com uma força descomunal para fora da cama e um desejo irresistível de tomar água a invadiu. Os chilreares a deixavam concentrada, limpa de pensamentos, era como se meditasse, só existia aquilo.
Já na cozinha lavada de luz, abriu a geladeira, tomando com uma elegância burguesa, que não lhe era de costume, uma jarra de água e uma taia de melancia. Seus movimentos nessa manhã eram tão graciosos que ela mesma os admirava, prolongando-os e gozando de seus prazeres egoístas o máximo de tempo possível. Em seu rosto sempre um sorriso sensual, seduzindo objetos e espelhos. Bebeu, com a voracidade e elegância de um lince, três copos grande de água e depois matou sua fome com a melancia. Escolheu melancia para continuar matando a sede ao comer.
Sentada na cozinha sob um feixe de luz, olhou fixamente para ponto nenhum e recordou o dia anterior e todo o seu vazio desesperador, ainda se sentia oca, só que agora estava sitiada por sensações diversas, e sentia-se invadida nessa manhã, quase transbordando, seu vazio agora estava sendo ocupado por: chilreio de pássaros, de uma frouxidão gostosa, por água e melancia. Desconfiou, então, que suas possibilidades eram ilimitadas, podia ser preenchida por qualquer coisa, seu vazio era infinito, seu espaço era sem medidas e ali caberia o mundo se ela quisesse.
domingo, 26 de outubro de 2008
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